ARQUIVO
Notícias
 

Alguém quer matar as artes de Rua no Porto
há +0 semana

Artigo de Fernado Pires de Lima, Dirigente do CENA-STE, para o Jornal de Notícias:

https://www.jn.pt/6925079154/alguem-quer-matar-as-artes-de-rua-no-porto/

"A Câmara Municipal do Porto prepara-se para decretar uma sentença de morte para a actividade artística nas ruas da cidade. A proposta de regulamentação sobre “animadores de rua” criada pelo grupo de Rui Moreira no Executivo foi apresentada em Junho de 2023 e esteve em consulta pública por dois períodos, até Dezembro. Acolhendo uma ínfima minoria das participações, o processo encaminhou-se no sentido de tornar o Porto um lugar inóspito para os artistas que vivem e sobrevivem do contacto directo com quem percorre as ruas da cidade.
 
Um gesto opressor denunciado, desde logo, pela intenção de regular localmente aquilo que já está legislado a nível nacional, direccionando proibições especiais apenas aos artistas de rua. Alguns exemplos: mesmo já existindo legislação para a venda ambulante e para o licenciamento fonográfico, o Executivo Municipal pretende proibir expressamente estes artistas de venderem os seus discos, estejam ou não licenciados; mesmo já se encontrando limitada pela lei geral a emissão de ruído na proximidade de habitações, escolas e unidades de saúde, o Executivo propõe impedir manifestações artísticas nesses locais, ainda que não emitam qualquer som (p. ex. estátuas vivas, malabaristas…); mesmo já existindo a proibição de circulação de peões em canais dedicados à circulação viária, pelo Código da Estrada, o mesmo Executivo pretende que fique escrito no regulamento do Município que são proibidas as actuações artísticas nesses locais. Em todos estes casos, trata-se de proibições aplicáveis exclusivamente a um tipo de cidadãos — os artistas — e, logo, um inaceitável tratamento desigual.
 
É compreensível que as actividades geradoras de ruído potencialmente incomodativo para alguns receptores (mesmo que seja música para outros ouvidos) devam ser objecto de especial cuidado. Ao longo das discussões que foram acontecendo dentro e fora das reuniões do Executivo, foram afirmadas duas preocupações centrais: os níveis de ruído e a rotatividade das actuações artísticas. Ou seja, é desejável que qualquer prática nos espaços públicos ou privados não resulte em níveis sonoros prejudiciais a terceiros, pela sua intensidade ou pelo seu prolongamento no tempo. Quererá o Município do Porto atender a estas preocupações? Talvez, mas será com a subtileza de quem resolve a patologia de uma árvore lançando fogo a toda a floresta.
 
A criação artística é um direito fundamental, tão ilegítimo de coarctar como a liberdade de expressão. Há que dizê-lo claramente e lembrar esta que é, também, uma conquista de Abril e da Constituição de 1976. Mas, aparentemente, o Executivo do Porto entende que a presença de um artista na rua é tão necessária de licenciar como um poste, uma antena, uma cabine telefónica ou um grelhador — outras ocupações de espaço público de que trata o Código Regulamentar do
 
Município. Não terá sido por acaso que, na última ocasião em que se discutiu este assunto, Rui Moreira comparou a presença de músicos na rua com os garrafões que um qualquer comerciante colocava abusivamente no passeio público para segurar os expositores à porta da loja.
 
Mas os artistas não são coisas. São um acrescento à vida cultural da cidade e estão disponíveis para assumir o compromisso com um conjunto de boas práticas que possam dar resposta aos potenciais conflitos. Não são apenas um incómodo que interessa licenciar de modo repressivo para que desapareça. Mais do que tudo, são pessoas, cidadãos, contribuintes, vivem desta actividade, muitos têm família e obrigações parentais, e o Município não deve tratá-los como descartáveis, lançando-os para a pobreza.
 
Com a preocupação de evitar este desfecho, o CENA-STE (Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos, do Audiovisual e dos Músicos) apresentou-se numa reunião do Executivo e expôs os erros da regulamentação proposta. Chamar “animadores” aos artistas? Não. Proibir toda e qualquer amplificação sonora sem cuidar de saber do seu real impacto? Não. Proibir o comércio de discos mesmo que o produto e a sua venda estejam devidamente licenciados? Não. Impor distâncias mínimas entre pessoas mesmo quando não se afectam mutuamente? Não. Proibir a presença de artes que não fazem ruído junto a escolas ou habitação? Não. Obrigar à utilização de uma esteira homologada pela Câmara Municipal? Não. Atacar o direito constitucional à livre criação e fruição cultural? Nunca.
 
Em resultado desta participação, o Presidente da Câmara propôs suspender o processo e considerar a posição do sindicato. Foi nesse sentido que solicitou o contributo do CENA-STE enquanto estrutura representativa da classe profissional. Mas querer-se-ia de facto ouvir? Não, como se demonstrou poucas semanas depois. Após uma dança inenarrável de prazos inventados para tentar denegrir a responsabilidade do sindicato, agarrou-se um álibi qualquer para dizer que não havia, do lado dos artistas, propostas válidas e exequíveis, e assim se manteria a regulamentação repressiva. Mas laborou-se sobre uma mentira, como se o CENA-STE tivesse apresentado pouco mais do que uma folha em branco.
 
Olhando para o cerne da questão — os níveis sonoros e a necessária rotatividade das actuações —, rapidamente se conclui que o uso de amplificadores eléctricos remete necessariamente para o licenciamento especial de ruído. Nas suas propostas, o Executivo não mexe uma palha nesse âmbito, deixando em vigor taxas inadequadas de 42€ ou mais por hora. Pelo contrário, o CENA-STE propôs a adequação das taxas e a definição de níveis sonoros limite, usando para tal um valor padrão medido a curta distância da fonte — prevendo uma suficiente dissipação do nível de ruído antes de este chegar a receptores sensíveis. Mais, propôs que estes valores fossem ajustados ao longo do mapa da cidade com base
 
nos dados que fossem sendo reunidos por uma comissão de acompanhamento a constituir, permitindo que esta fosse uma regulamentação dinâmica e adaptável à realidade e às necessidades. E resolvia a rotatividade com a limitação das actuações a 90 minutos por local.
 
Nada disto interessou à maioria que governa a Câmara do Porto, e particularmente ao seu Presidente, que tem sempre na ponta da língua o testemunho da senhora da mercearia onde foi há dias comprar cebolas e que, coitada, já não pode ouvir mais o sujeito que toca ali perto. Demagogia pura de quem não quer reconhecer que o sindicato apresentou soluções concretas para regulamentar o licenciamento especial de ruído e a rotatividade das artes sujeitas a este licenciamento.
 
Já foi o tempo das ruas tristes nas cidades portuguesas, onde tudo era proibido porque sim, onde uns eram cidadãos de primeira e outros de segunda. Esta regulamentação repressiva, que será votada muito em breve no Executivo Municipal do Porto, não pode passar."