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Nem mais um cravo na Casa da Música
há +126 semanas
(Artigo de opinião do dirigente do CENA-STE, Fernando Pires de Lima, publicado a 2 de Maio no Público)
 
Em Abril, a Casa da Música, no Porto, apresentou um trio de concertos chamado Música & Revolução. Longe vai a primeira edição desta iniciativa, em 2007; longe no tempo, e ainda mais nas ideias. Era então um festival celebrativo do 25 de Abril e do 1.º de Maio, que incluía a arte de figuras centrais da música de intervenção (José Afonso como homenageado, José Mário Branco como artista convidado naquele ano…) e fazia questão de ser um reflexo do lema daquela instituição: a Casa de Todas as Músicas. Por isso, integrava em força as músicas populares, nalguns casos com concertos encomendados especialmente para o efeito. Foi assim que Pedro Burmester o idealizou, num outro tempo. Vai distante a última vez que um destes concertos coincidiu com o dia 25 de Abril, enquanto se vai fugindo à evocação de revoluções democráticas, não se acolhe as músicas populares e se mantém os cravos ausentes da decoração e dos espíritos. Nem um para amostra.
 
Mas este é apenas um sinal. Onde o princípio democrático se perdeu por completo é no dia-a-dia, cá dentro, onde há dois caminhos possíveis a seguir: de um lado, o silêncio, a subserviência e o medo; do outro, a livre expressão de opinião, a luta por condições justas de trabalho e as represálias. Muitos de nós escolheram o segundo caminho. O da liberdade, o da acção sindical, o do respeito pelos trabalhadores. O das represálias. Ser sindicalizado nesta instituição cultural não é fácil e tem dado direito a despedimento, por se estar em situação de falsos recibos verdes ou contrato a termo, e a discriminação nas correcções salariais, dadas a alguns e negadas a quem por elas lutou. Há trabalhadores encostados sem trabalho, que passa a ser feito em regime de outsourcing, incluindo contratos públicos de 120 mil euros alegando falsamente a ausência de recursos próprios. Há a integração forçada de trabalhadores em departamentos que não os seus. Há alienação de pessoas, permanentemente excluídas das reuniões de equipa. Há a retirada de perigosos sindicalizados dos seus gabinetes para os distribuir por um open space, onde não é possível desempenharem as funções para as quais são pagos e, sobretudo, com a intenção infantil de cercear as conversas subversivas. Há esvaziamento de funções de profissionais da cultura experientes e especializados. Resumindo numa frase: os rostos visíveis só poderão ser os que se mostrem consonantes com a administração, os outros são para eliminar.
 
A administração faz questão de nos deixar recados sinistros, entre o deixem-nos trabalhar e a valorização das vontades de uma maioria silenciosa imaginária, lembrando os ditos de grandes democratas do passado. Além das perseguições, há uma sucessão de reestruturações contraditórias. Depois de se decidir que o alto salário da administradora-delegada justificava que acumulasse a direcção financeira e a de recursos humanos, afinal nem uma coisa nem outra. Contrata-se directores para estas áreas, naturalmente sem abertura pública de concurso; e sabemos por onde andam os salários de topo, entre os 6 500 e os 8 000, bem longe dos salários mínimos e quase mínimos que a Fundação insiste em pagar a trabalhadores com muitos anos de carreira. Pelo caminho, encomenda-se mais estudos externos de recursos humanos e deita-se fora aqueles que, no mandato da anterior administração, já custaram 93 mil euros (mais IVA) e ficaram escondidos na gaveta.
 
Abril já não existe na Casa da Música. No 1.º de Maio, tal como no comércio de retalho, o Dia do Trabalhador não conta e os funcionários foram convocados para estarem ao serviço num concerto com nome de agência de seguros. A Casa de Todas as Músicas é também uma miragem e o serviço público esvaiu-se. O investimento nas áreas pop, rock, electrónica, world e fado caiu vertiginosamente ao longo dos anos: 30% dos gastos anuais em programação própria há pouco mais de uma década (e 40% das receitas de bilheteira), reduzidos a 11% dos gastos anuais nos últimos anos normais, antes da pandemia. Uma programação que foi sendo esmagada pela preferência por alugueres de sala a promotores comerciais, apesar de se contar com profissionais especializados no quadro de pessoal. Estes fazem os possíveis e os impossíveis sem um orçamento digno e, pasme-se, sem autorização para visitarem a maior parte das feiras internacionais de música. Noutros tempos, desde a abertura da Casa com Lou Reed, puderam programar coisas memoráveis como o Clubbing, o Festival Mestiço, o Porto de Fado, o festival Casa Portuguesa, concertos inteiramente encomendados a artistas portugueses do jazz e da música popular, etc. 
 
Nos três concertos Música & Revolução (às vezes são dois…), entre assistentes de sala, técnicos extra, instrumentistas e coralistas, trabalharam mais de 100 pessoas a recibo verde. Na Casa da Música impera uma política de gestão virada para a externalização, que se pretende aplicar cada vez mais (garantidamente nas áreas dos técnicos, dos designers, dos produtores e dos editores, além das que já existem nos assistentes de sala, nos músicos-formadores, na programação e outras). O motivo para a sanha externalizante adivinha-se com facilidade: abrir espaço aos despedimentos que se seguirão. Enquanto isso, o governo embala-nos na ficção da agenda do trabalho digno e num Estatuto dos Profissionais da Cultura que se apresenta com a pretensão de reduzir a precariedade e promover os vínculos laborais estáveis. A sério?
 
Fernando Pires de Lima
Dirigente e delegado sindical na Casa da Música
 
📷Teresa Aguiar
 
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