E aconteceu exactamente o que se previa, há meses...
A meio do ano, no início do 'mês morto', a DGArtes divulga, com imenso atraso, os resultados de um concurso em que as actividades deveriam estar a ser realizadas, o mais tardar, desde Junho. Só isso, por si, é devastador para os trabalhadores do sector...
Mas o rol de problemas já vem de trás. Apenas um dos quatro resultados concursais foi divulgado antes do início do respectivo período de execução. E note-se que só se poderão realizar despesas elegíveis após a data de homologação final dos resultados! Já para não falar do tempo adicional consumido pelas tramitações dos processos de contratualização com o Estado...
Por estas razões, há muitos projectos com actividades previstas para o trimestre passado que estão de mãos atadas, com uma execução muito reduzida.
Já desolador havia sido o facto de o período de candidaturas se ter iniciado na vertigem da passagem de ano, quando devia ter-se iniciado, pelo menos, em Outubro! Temos, portanto, que a Declaração Anual da DGArtes de 2022 se nos apresenta como o que, na gíria, se denomina de 'uma folha de alface'.
Repare-se que as actividades decorrentes dos projectos artísticos não contemplados têm agora de fazer o exercício de 'cortar', dos seus já magérrimos orçamentos de produção, valores que podem atingir os 55.000.
O exercício tem três resultados possíveis:
(1) Perda total de viabilidade do projecto, porque as restantes fontes de financiamento não permitem a prossecução;
(2) Reordenação de todo o projecto de produção, depois do murro no estômago, para que se realize somente com as outras fontes de financiamento (geralmente em espécie);
(3) Projectos com actividades já iniciadas obrigados agora, a meio do processo de produção, a cortar como podem e onde podem O resultado é um objecto artístico com acesso a menos meios e potencialmente mais pobre a vários níveis. Corta-se nos materiais e mantém-se as equipas, ou já não se consegue cortar nos materiais e tem de se cortar vencimentos. Em suma, quem sai por baixo é sempre o trabalhador.
Três quartos dos candidatos (623 dos 833) não obteve o apoio solicitado ao Estado para reforçar o orçamento dos seus projectos artísticos (ou colmatar parte do financiamento que não é possível angariar de outras fontes). Tal deve-se, quase na totalidade, à razia verificada no último Programa de Apoios Sustentados (modalidade bienal), há meses, directamente responsável pela enxurrada de candidaturas aos actuais apoios à criação.
O anacronismo sobrejacente é que significativa parte das candidaturas obteve notas de apreciação muito positivas por parte do júri; esbarrou foi na falta de verbas. E isto já não é novidade nenhuma.
Atente-se então nas verbas: 9,2M para a totalidade dos apoios a projectos, dos quais 5,25M correspondem à parte dos apoios à criação. Aproximadamente 10M é o que o Governo acha perfeitamente plausível investir nas áreas culturais que - não conseguindo o Estado produzir directamente e tendo noção de que a produção pretendida não é economicamente viável - são absolutamente indispensáveis ao desenvolvimento do país e ao avanço da sociedade/dos cidadãos. Passa então essa responsabilidade aos agentes da sociedade civil, apoiando parcialmente as produções que estes realizam. Lendo de novo este parágrafo, o que sai bem pequeno na fotografia são os 10M.
É verdade, estes números dão dó... São o verdadeiro e transparente espelho da suborçamentação, também ela crónica, dos apoios do Estado ao sector.
E olhando para os gráficos produzidos pela própria DGArtes, comparando os valores disponibilizados com os números de candidaturas apoiadas, temos um cenário de valor por candidatura/projecto muito parco. Tão parco que temos de perguntar se o ministério tem real ideia dos valores do orçamento de um projecto artístico sólido (a todos os níveis); se tem ideia do valor da mão-de-obra, dos serviços necessários, dos materiais, dos equipamentos técnicos, etc.? É que, se tem, decerto saberá, no caso dos apoios à criação, que um apoio até ao máximo de 55.000, sem atalhos, quando muito, permite sustentar os encargos da mão-de-obra e as mais básicas ferramentas de trabalho de duas pessoas durante um ano e sobra qualquer coisa para a contratação de um ou outro serviço técnico. Agora é só pensar que nem todos (aliás, muito poucos) terão acesso ao valor máximo de apoio...
Existe um desfasamento, que se prefigura como um abismal fosso, entre a realidade quotidiana e a projecção mental do ministério sobre o que é um orçamento de um projecto artístico, que tem de ser difundido e circular (com todas as despesas decorrentes).
Outros números falam verdades incontestáveis por si. Mais 65% de candidaturas válidas, um valor de dotação que, é certo, mais do que duplicou face a 2020, mas que face ao anterior ciclo subiu somente 24%. Desde a razia do último Programa de Apoios Sustentados (bienal), o que agora se observa era de ocorrência por demais previsível!
Enfim, cai por terra o argumento do ministro de que nem todos os que submetem candidatura podem ser apoiados. Face às pontuações registadas nestes processos, o elefante no meio da sala é, sem sombra de dúvida, o orçamento da cultura. O resto é simples e puro fait-divers.
O que o governo e o ministro parecem pretender é criar um vazio a meio do sector artístico: estruturas apoiadas por quatro anos, por um lado; e um panorama de criação artística ao projecto, completamente dominado pela absoluta precariedade, por outro. Será um dividir para reinar? Será uma forma de obter calma de uma parte e manter a outra sob controle (leia-se, navegando à vista, a lutar pela sobrevivência, pelo pão)? Será tudo uma estratégia com objectivos políticos a cumprir ou será só o mais puro, simples e desastroso atabalhoamento cíclico (a que se soma a crónica falta de recursos da DGArtes)?
Bem, e o que temos da montanha? Umas parcas mais 19 candidaturas apoiadas em todo o universo do Programa de Apoio a Projectos!
Contraporá a tutela que todos os apoiados têm agora verbas muito mais substanciais do Estado para a prossecução das suas actividades... As meias-verdades valem o que valem. Os trabalhadores do sector têm vindo, na generalidade, a fazer o possível recorrendo ao nada. Agora uns não farão nada e outros farão pouco, com muito pouco.
Para génio, génio e meio, é somente óbvio que a génese do problema reside no mais que anémico orçamento da cultura.