Notas do CENA-STE sobre o Estatuto dos Profissionais da Cultura em consulta pública
Perante a publicação em consulta pública da proposta do Estatuto do Profissional da área da Cultura, constatamos que o mesmo começa por não cumprir a autorização emitida pela Assembleia da República, nesta matéria.
A autorização legislativa que decorre do artigo 251.º do Orçamento do Estado para 2021, Lei 75-B/2020, de 31 de Dezembro, tinha como sentido o de combate à precariedade e não a sua promoção como acontece em vários exemplos que constam da proposta apresentada. A luta dos últimos anos dos trabalhadores da cultura levou a que o Governo se visse forçado a procurar dar alguma resposta, perante a clara evidência da situação insustentável que milhares de trabalhadores deste sector enfrentam.
Poderia até parecer que o Governo teria percebido que se fizesse cumprir a lei muitos dos problemas que temos hoje simplesmente não existiriam. No entanto, aparece, mais uma vez, de forma simplista, uma proposta que pretende premiar aqueles que prevariquem dentro de certos limites.
Até quando vamos continuar com máscaras para a ilegalidade e a precariedade?
A proposta do governo pretende instituir por muitos anos a manutenção, naturalização e legalização da precariedade, da instabilidade e da insegurança no trabalho artístico e cultural.
A implementação de medidas de fundo que sejam verdadeiramente transformadoras da situação laboral depende de um conhecimento aprofundado do sector que o governo demonstrou não ter ainda. Como ponto de partida, teria sido fundamental que a elaboração deste Estatuto fosse antecedida pela rápida conclusão do mapeamento do sector artístico e cultural em Portugal, incluindo todos os trabalhadores com ou sem formação técnica ou artística que nele trabalham ou que desenvolvam actividades que dependem dessa formação em áreas fora do sector cultural.
É também relevante a estreiteza de visão do governo, excluindo de um estatuto de trabalhador da cultura profissões e realidades como as artes plásticas, a literatura ou o património.
Lê-se nesta proposta que "grande parte das atividades culturais se baseia em relações de trabalho com autonomia jurídica". Tal não corresponde à verdade, como o têm demonstrado os inquéritos ao sector feitos pelo CENA-STE. Não é de uma abordagem que inclua os profissionais sem subordinação jurídica que o setor necessita, aumentando a probabilidade de precariedade, mas sim da efetiva implementação de contratos de trabalho onde estes são presumidos.
É inaceitável que um diploma que se propõe combater a precariedade do setor mencione que a administração direta e indireta do Estado deve "preferencialmente" - e não obrigatoriamente - , recorrer ao regime de contrato de trabalho.
A forma mais eficaz de protecção do trabalhador é, efectivamente, a presunção de contrato de trabalho em todas as actividades abrangidas pelo presente estatuto. Admitindo-se, ainda assim, a prova em contrário. No entanto, a proposta espelha uma normalização da prestação de serviços.
No que respeita ao contrato a termo e de curta duração, a não aplicação do regime geral da sucessão e renovação de contratos a termo constitui um prejuízo injustificado para os trabalhadores - por exemplo aqueles com actividades de mediação -, cujo modo de prestação de trabalho não se relacione com os pressupostos do presente regime, designadamente, o carácter intermitente da actividade.
O afastamento das regras do Código do Trabalho em matéria de contratos sucessivos e limite de renovações permite ultrapassar este princípio através da celebração sucessiva e ad aeternum de contratos de trabalho para o mesmo posto, sob o pretexto de favorecer o exercício da actividade em sucessivos projectos temporários Na prática, só consagra uma solução de absoluta precariedade, ainda e quando se verifique a necessidade permanente do posto de trabalho ocupado.
Não encontrámos, numa multiplicidade de casos considerados e estudados, um só em que se verifique a necessidade de promover alterações á lei do trabalho para permitir o respectivo enquadramento numa situação contratual a termo. Esta fórmula "descoberta" no estatuto só consigna a maior precarização geral do sector.
A presunção da existência de contrato de trabalho em face de trabalhadores abrangido pelo estatuto e a simplificação da carga procedimental e administrativa seria a melhor forma de resolver este problema.
A modalidade de contrato de trabalho com atividade descontínua é inaceitável. O caráter intermitente ou descontínuo das atividades artísticas e culturais é um efeito colateral do subfinanciamento e da volatilidade do seu tecido económico e não sua caraterística intrínseca. Dificulta o estabelecimento de vínculos permanentes nos casos em que já existem falsos recibos verdes. Não considera meses de preparação, formação e estudo como tempo de trabalho, reduzindo-o ao período de gravações, ensaios ou espectáculos. Reduz, isso sim, o tempo de trabalho, com consequências no plano dos direitos sociais.
O contrato de trabalho com pluralidade de trabalhadores perpetua o que de pior tem a Lei 4/2008 que com este Estatuto se revoga. Não se vê qualquer vantagem na sua existência num documento que tem como mandato a diminuição da precariedade. Não consideramos um esforço significativo a celebração de um contrato com cada um dos trabalhadores, uma vez que limita a possibilidade de um trabalhador se ver vinculado por condições que não aprovou expressamente.
É lamentável que numa peça jurídica que procura, por mandato da Assembleia da República, reduzir a precariedade e melhorar as condições de trabalho de um sector amplamente desregulado, se parta do princípio de que seja aceitável que o trabalhador da cultura possa passar toda uma vida de trabalho sem ter acesso a, pelo menos, um dia por mês de descanso coincidente com um sábado ou um domingo, retirando a estes trabalhadores a possibilidade de partilharem tempos de descanso com as suas famílias.
O estatuto não responde no plano da protecção social, não assegura uma carreira contributiva e não garante a devida protecção social.
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